Há muito tempo, quando ainda pequeno, minha mãe costumava
contar-me a respeito de um homem que levava as crianças pequenas e malcriadas
para longe de seus lares. Tenho certeza de que ouvira histórias ou lendas
semelhantes. A simples menção a respeito do homem era o suficiente para colocar
medo em nossos tênues e ingênuos corações. Não importava sua aparência, ou o
que carregava, e nem o paradeiro dos meninos e meninas sequestrados; o que
importava era somente uma coisa: não desobedecer aos seus pais, pois essa era a
lição a ser aprendida.
Eu vivia em uma amena e afastada cidade no interior do
Estado, e, em razão disso, conservávamos tradições e costumes locais. Lendas,
portanto, eram adaptadas ao nosso ambiente rural. Pais contavam a seus filhos
que o homem, ao sequestrar as crianças, desaparecia com elas para dentro de uma
densa floresta que fazia fronteira a malha urbana. Sequer chegávamos próximos à
borda dessa floresta. Adolescentes – que sabiam que a história não passava de
um simples folclore – perambulavam por entre as matas. Caçadores, idem. Não
culpo nenhum deles, afinal, o alvo do homem da floresta eram crianças como nós.
A fábula, de fato, consistia-se em um conto antigo.
Remetendo-se há tempos longínquos e esquecidos. Provavelmente meus avós escutaram
a mesma narrativa que eu, assim como seus antecessores. Nunca soube ao certo
quando ou como isso começara. Nem era uma criança má, embora estremecesse
diante da história do mesmo modo que qualquer outro garoto de minha idade.
Contudo, os anos passaram, e a inocência escapara de meus dedos, somente para
dar graça às alegrias, preocupações, orgulhos e frustações da vida adulta.
Hoje, meu único filho, Ethan, com apenas sete anos de idade,
representa tudo o que tenho de mais sagrado. Embora possa parecer clichê ou
piegas, ele é a razão da minha vida. Minha esposa, Lisa, morrera ao dar a luz,
e Ethan jamais chegara a conhecer sua própria mãe. Eu fazia de tudo para que
nada lhe faltasse, e ele crescera bem. Sabia que se tornaria uma excelente
pessoa no futuro. Morávamos na mesma cidade que cresci e passei tanto a amar.
Inúmeros amigos haviam se mudado, alguns permaneciam e poucos retornavam para
cá em questão de tempo. Ethan frequentava a mesma escola, brincava no mesmo
parque e andava de bicicleta nas mesmas ruas que eu, como o fizera em sua
idade.
Nunca lhe contei ou amedrontei-o com essas histórias. Não
houve e nem haveria necessidade. Uma noite, no entanto, acordei exatamente às
03:30 a.m., pois escutara um barulho no corredor. Levantei-me para conferir o
que poderia ser e encontrei Ethan em pé, parado diante à porta da frente.
Aproximei-me de meu filho, chamando-o pelo nome. Ethan – que estivera imóvel
como uma estátua – mexeu-se, virando em minha direção. Seus olhos, sonolentos e
confusos, vaguearam pela sala de estar até perceberem minha presença.
Perguntei-lhe o que fazia ali, e ele dissera-me que não sabia.
Aliviado, percebi que não passara de um simples caso de
sonambulismo. Carreguei-o até a cama, cobri-lhe e dei um beijo de boa noite. No
dia seguinte, enquanto servia o seu cereal favorito, questionei-o a respeito, e
como havia imaginado, Ethan não se lembrava de nada. Terminamos, deixei-o na
escola e parti para o trabalho. Uma semana depois... Ethan desaparecera. Foi no
meio da madrugada. Sentindo uma secura intensa, levantei-me para beber um pouco
de água, encontrando a porta da frente aberta. Por instinto, minha primeira atitude
foi correr até seu quarto, somente para deparar-me com uma cama vazia. Procurei
por toda a casa e não havia nenhum sinal do meu filho. Saí para o jardim e a
rua nada mais me oferecia a não ser o breu e a quietude noturna.
Assim, enquanto uma equipe de busca perambulava pela cidade,
dois policiais interrogavam-me. Explicaram-me que, por medidas de segurança, me
acompanhariam no restante dos dias, pois o sequestrador poderia fazer algum
contato comigo, pedindo por alguma quantia de dinheiro em troca do meu filho.
Depois de três dias as buscas por Ethan estenderam-se para cidades vizinhas.
Pôsteres e fotografias foram espalhados para todos os cantos. Amigos e vizinhos
prestaram-me auxílios. Os policiais que permaneceram comigo durante esse tempo
voltaram para suas estações, dizendo-me para ligá-los caso algo acontecesse.
Os próximos meses foram como um inferno para mim. Minha vida
tornou-se apática, sem sentido. Por inúmeras vezes dirigi o carro até a escola
de Ethan no caminho para o trabalho, simplesmente por puro hábito. Ao preparar
o café da manhã, colocava dois pratos à mesa. De noite escutava sons na casa, e
perguntava-me, em mente, se Ethan estivesse acordado. Todos esses momentos...
Em que me pegava realizando as mesmas atividades rotineiras que anteriormente
envolviam a presença de meu filho... Partiam meu coração. Comecei,
gradativamente, a acordar no meio da noite, clamando por seu nome, como se o
houvesse visto em algum sonho em que nunca conseguia me lembrar dos detalhes.
Aos poucos, a paranoia tomou conta de mim. Concentrar-me no
trabalho tornara-se uma atividade praticamente impossível. Também não queria
ficar em casa por mais tempo além do necessário. Passei a frequentar bares,
sozinho. Dormia pouco; quando não passava noites em claro, vagando pela cidade.
Era uma desordem completa, e embora meu chefe solidarizava-se com a situação,
disse-me que não poderia continuar desse modo. Eu deveria superar aquilo, caso
contrário não haveria outra escolha, a não ser demitir-me. Foi durante uma
noite, em particular, que adormeci embriagado na minha sala de estar. Acordei,
alarmado, pensando ter escutado um barulho qualquer. Trôpego, caminhei em
direção ao banheiro. O que vi, no entanto, assombrou-me imensamente. Imóvel, de
costas para mim e contemplando a porta da frente, estava Ethan.
Aquilo me chocara. Sabia que não poderia ser real. Como
poderia? Ethan desaparecera há meses. Minha mente, insana, começara a pregar-me
peças. Não conseguia e nem podia acreditar em meus olhos. Em um primeiro
momento, fiz a menção de correr em sua direção, mas algo havia me impedido,
pois minha atenção subitamente desviara-se para a silhueta de um homem, que se
encontrava parado à soleira da porta entreaberta. Desnorteado em meu desespero,
implorei para que Ethan ao menos virasse seu rosto em minha direção.
Entretanto, meu filho começara a caminhar em direção à porta. Pedi-lhe que
voltasse, porém, indiferentemente, ele continuara. Dando suas mãos a aparição
sombria, Ethan caminhara noite afora.
Segui-os e notei que ambos encontravam-se há cerca de
cinquenta metros da casa. Sentia que algo estava errado, porém continuei a
acompanhá-los. O caminho pela qual a assombração (pois já duvidava que fosse
qualquer outra coisa) seguia não me era estranho. Curiosamente, não havia
ninguém nas ruas. Sequer uma alma bisbilhoteira a espiar por entre as frestas
de uma janela qualquer. Absolutamente nada. Continuei em seus encalços, até
perceber para onde ambos se dirigiam. Parei, e enquanto estático, observei-os
adentrar na borda da floresta. Por algum motivo, meu corpo cobriu-se de
arrepios, enquanto que um nó no estômago começara a se formar. Reunindo
coragem, ultrapassei o cercado que separava as árvores da estrada.
O interior da mata era completamente fechado, e mal pude
enxergar o caminho. Ethan desaparecera, porém continuei a andar, como se algo
me impelisse a continuar em frente. Aos poucos, acostumei-me à escuridão, e uma
impressão ruim acometera-se sobre mim. Percorri, por centenas de metros, aquela
densa vegetação. Era estranho. Nunca estive naquele lugar, mas passava-me uma
sensação diferente. Não me lembrava de nada, mas a intuição guiava meus passos conforme
avançava pelo desajeitado caminho da floresta. Ofegante, cheguei finalmente a
uma pequena clareira. O luar a iluminava muito bem, e pude ver o que o acaso me
revelara.
Ao canto, próximo a uma rocha, havia uma ossada. Lágrimas
afloravam de minha face conforme me aproximava do corpo há muito carcomido por
vermes. As roupas eram do mesmo pijama que Ethan vestira na noite em que
desaparecera. Caí de joelhos, aos prantos. Segurei o que restara de seu corpo
em meus braços, enquanto que soluços tomavam conta de mim. “Por que Ethan?” “O
que houve?” “Por que está aqui?” “Por que de todos os lugares, este?”. E aos
poucos, conforme proferia múltiplos questionamentos, dei-me conta da verdade.
Esta floresta... Este lugar amaldiçoado. Era para cá que crianças deveriam ser
levadas. Crianças que desrespeitavam a seus pais. Ethan era uma delas. Sim...
Ele desobedecera a mim. Pois naquela noite, implorei-lhe para que a permitisse
viver.
Não me admirava que não o houvessem encontrado. Sequer
acredito que tenham procurado por ele aqui. É uma cidade pequena, não
disponibilizavam de muitas mãos ou recursos. Compreendia agora. Meu fingimento.
Minha crença infundada em acreditar que tudo estivera bem, quando claramente
não estava. Pois no dia em que nascera, Ethan arrancara Lisa de mim... Ele a
havia afastado de mim, deixando-me sozinho. Foi ele quem prejudicara nossas
vidas. Por isso fiz o que precisava ser feito. Por isso naquela noite, conforme
segurava suas pequenas mãos, percorri por esse mesmo caminho. Por isso o abandonei
aqui... Para que o homem da floresta o levasse de mim.
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